Numa fria noite de sábado, o primeiro da primavera de 2022, o rapaz das entregas resolveu fazer algo raro naquela casa: ver um programa de televisão da famosa emissora do plim plim. Arrumou algo para comer, pegou um cobertor, e foi para o sofá, enquanto a família dormia em seus quartos. Ligou a TV, e assistiu o pouco de algo que simplesmente não o empolgou.
Viu um cenário no qual o entrevistador e entrevistados estavam no meio do palco, cercados por uma numerosa plateia, que de vez em quando fazia perguntas aos artistas ali presentes. Para alguém acostumado com podcasts no youtube, aquilo tudo lhe parecia antiquado. E as pessoas ali entrevistadas lhe eram ilustres desconhecidas, embora fossem apresentadas na condição de famosas. E de repente, o pai (que tinha se levantado para tomar água), olhou o que ele fazia e disse:
"Caramba, pensei que esse programa já tinha saído do ar. Alguém ainda assiste isso?", perguntou, olhando por trás do sofá.
"Tem eu vendo, né? E agora contigo são nós dois, no bairro todo, eu acho." Aquela noite curitibana - e caximbense - estava tão tranquila, que ambos concordaram que dava para escutar o silêncio.
"Quando eu era criança nos anos oitenta, tinha algo muito melhor, e no mesmo horário. Era uma sessão de filmes que começava lá pelas nove e meia da noite, depois da novela das oito. Passava muito filme bom, que várias vezes assistia sozinho, que nem você agora. Lembro de um sábado que fiz vários sanduíches de mortadela, abri uma garrafa de tubaína, e como ninguém acordou, também assisti a sessão de gala e varei a madrugada até o coruja colorida. Me divertia muito naquelas noites", disse, sentindo saudade.
"Mas não é melhor agora?", perguntou o filho. "Com a internet, sobram opções, tem muita coisa interessante, né?"
"Se fosse mesmo assim, estaria aqui vendo esse programa chato? Você não tem ideia de como a TV daquele tempo tinha qualidade. As opções eram poucas, mas o nível era muito melhor", disse, enquanto abria a geladeira, pra fazer um sanduíche, como que tentando repetir aquela distante diversão da infância.
"Por que era melhor?, perguntou o rapaz. "A principal emissora tinha muito mais audiência do que atualmente, e bem menos concorrência do que hoje. Podia passar qualquer porcaria, que o povo veria de qualquer jeito, né?"
"Isso é meia verdade", respondeu o pai. "Tinha muita bobagem, é claro, mas havia uma diferença: não existia a lacração. Naquelas noites nunca vi filme com mensagem, feito pra me doutrinar. O negócio de quem produzia os filmes era ganhar dinheiro fazendo algo pra entreter, e a TV passava o que as pessoas queriam ver, simples assim. E olha pra eles", disse, apontando para a televisão. "O que essa turma tá dizendo interessa pro povo? Para alguém que conhecemos? Cara, é como se nós e eles vivêssemos em planetas diferentes."
E empolgado, o pai prosseguiu: "e quando não gostava do filme que exibiam, mudava para o Perdidos na Noite, muito melhor do que isso aí. Assisti o Engenheiros do Hawaii, Ira e Legião Urbana lá. Isso que era cultura de verdade, e sem os recursos de agora."
"Mas", perguntou o filho, "falando da tua noitada dos sanduíches de mortadela, tubaína e três sessões de filmes, foi tão divertida por quê? Para se lembrar assim, foi muito bom, né?"
"Entenda. Era 1987, tinha 13 anos, e estávamos numa crise danada. Videocassete era ficção científica pra gente, só podia sonhar. Teu avô tinha ido trabalhar em São Paulo numa obra; tua vó faxinou pra fora naquele dia, e foi dormir logo depois de ver a novela Roda de Fogo, de cansada; e teus tios eram bem pequenos e também tinham ido pra cama. Disse pra ela o que queria fazer de noite, e ela concordou, desde que a TV não ficasse com o som alto, e até deu um dinheiro para comprar algo pra comer. Fui ao mercado, me 'abasteci', e em casa esperei a hora chegar. Noite silenciosa, que nem hoje, a sala escura, frio, e eu com cobertor no sofá, e me sentindo mais velho, fazendo que nem adulto. Coisa de criança pobre da época."
"Os filmes foram bons? Lembra deles?"
"Sim, lembro dos três, mas só recordo o nome do primeiro."
"Qual é?", indagou o filho, interessado pela cultura cinéfila oitentista do progenitor.
"Se chama O enigma do Outro Mundo. Por ser de terror, fiquei sem dormir até as cinco da manhã, daí aproveitei e vi os outros. Pô, teve uma cena em que a barriga de um cara se abriu, saiu uma cabeça com o rosto dele mesmo lá de dentro, e os caras tiveram que botar fogo nela! Me assustei, mas gostei", disse, e riu.
E após muita conversa, os dois fizeram uns miojos para saciar de vez a fome e resolveram "encerrar a noitada", substituindo o programa da TV aberta pelo streaming de um filme antigo, que o pai não via desde a infância, para revê-lo com o rapaz.
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MARCADORES: SÁBADO À NOITE, PROGRAMA SUPER CINE NOS ANOS OITENTA, FILMES, CINEMA, CULTURA POP OITENTISTA, PROGRAMA ALTAS HORAS, SETEMBRO, 2022
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