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Fazia cerca de uma semana, desde que voltou a morar em Peruíbe, após uma década de "exílio" involuntário em São Paulo, para onde tinha se mudado com a família, contra a própria vontade, quando tinha dezessete anos. Por mais atraente que fosse a capital para muitos jovens do litoral, em busca de oportunidades de estudo e trabalho, seu apego pela cidade na qual nasceu jamais perdeu força. Sempre tratou essa mudança como temporária, algo que reverteria, se uma oportunidade surgisse.
Bem no início, já na nova morada, concluiu que participando de concursos públicos na baixada, poderia passar em algum, e assim teria a oportunidade de voltar. Tentou diversas vezes, não apenas na cidade natal. Itanhaém, Mongaguá, Praia Grande, São Vicente, até Santos, foram visitadas por ele, nas quais participou de provas para cargos municipais, estaduais e até federais. O importante era passar, ter o desejado emprego, e assim poder ir embora de um lugar que considerava demasiado poluído (pois é) e barulhento demais.
E barulho nunca faltou para incomodá-lo, em todo esse tempo. No bairro em que foi morar, viu os famigerados pancadões serem realizados, no começo durante os fins-de-semana, e mais adiante em outros dias, tirando o sono dos vizinhos trabalhadores, dos parentes e dele mesmo. Várias vezes, assistiu pela janela do quarto uma juventude, tão nova quanto ele, se perder em prazeres que considerava nefastos, um tipo de vida que desaprovava. Basta dizer que até rompeu com a primeira namorada, após ela insistir para que frequentasse os "bailes". Definitivamente, curtir "batidão" não nunca foi a sua praia.
E nos primeiros anos por lá, enquanto se virava com trabalhos temporários (não conseguia algo estável e melhor pago), e longos períodos de ócio, além de insistir nos concursos, frequentava a faculdade, onde foi diplomado após bastante esforço. A ideia de arrumar um bom emprego, e assim permanecer na terra da garoa até lhe passou pela cabeça, pois o precário mercado de trabalho da terra da eterna juventude pouco oferecia aos recém-formados, e decidiu "correr atrás", o que não significava desistir do lugar no qual nasceu. Afinal, tinha que se tornar independente financeiramente dos pais, os quais tanto o ajudaram e seguiam ajudando.
Após muitíssimas entrevistas de emprego, realizadas em diversos cantos da enorme metrópole, finalmente conseguiu uma vaga, numa empresa de tecnologia da informação. Analista de sistemas formado, ficou muito satisfeito quando recebeu o primeiro salário. Deixou os concursos de lado, pois não os via mais como fundamentais, a área privada demonstrou ser muito atraente. E assim foi seguindo, até que a pandemia começou.
No começo ficou bem assustado, como praticamente todo mundo, se preocupando com a saúde dele mesmo, de parentes e amigos. Uso constante de máscaras, álcool gel nas mãos, cuidados ao usar o ônibus (que o motivou a comprar uma moto) se tornaram parte da rotina diária. E ainda tinha uma preocupação: o risco de se tornar desempregado. A movimentada avenida da empresa se encheu de lojas e restaurantes fechados e posteriormente falidos. Os lockdowns não só afastaram as pessoas das redondezas, como também os investimentos, e após uma conversa sobre a economia do país, o patrão o tranquilizou, dizendo que apesar da crise, os negócios até que iam bem (a demanda por certos serviços de informática tinha aumentado). Seus pais já tinham se aposentado, sua irmã (caçula) ainda estudava, e o irmão, mais velho e com filhos - e que morava com eles - conseguiu trabalho num supermercado, antes do Covid-19 supostamente chegar. Uma família até que remediada, em pleno "novo normal".
Já nem pensava em retornar ao torrão natal, quando teve uma ótima notícia: a oportunidade de realizar o trabalho no esquema home office. Um colega, bem mais velho, se mudou para uma cidade vizinha e bem menor, onde passou a trabalhar à distância, pois assim se sentia mais tranquilo, em relação ao "novo" coronavírus. Quanto menos precisasse sair de casa, melhor. E o rapaz, então com vinte e oito anos, viu aí a oportunidade de realizar um antigo desejo, quase que abandonado: o de retornar para o antigo lar.
A família tinha um apartamento no centro de Peruíbe, recentemente desocupado, pois os inquilinos não renovaram o contrato. Aliás, foi ali em que todos moraram, até terem se mudado para São Paulo. Não deu outra: pediu as chaves, e após alguns acertos, com a firma e o progenitor (combinou pagar um aluguel, pois os pais dependiam do dinheiro ganho com o imóvel), finalmente voltou de mala, cuia e um notebook novinho para o litoral paulista.
Não se instalou na antiga residência sozinho. A caçula também o acompanhou (em parte, para se afastar de amizades duvidosas e um ex-namorado possessivo), e uns sete dias após chegarem, e com o apto em ordem, ele se sentiu livre, pois estava lá por vontade própria, e não por escolha e imposição dos outros, finalmente se sentia fazendo o próprio caminho. Conversou por um aplicativo com um amigo e conhecido dos tempos de escola, que no ano passado tinha se mudado para Curitiba, com o objetivo de ficar próximo da namorada. Tomou essa decisão num dia de inverno, após ambos terem visto uma madrugada de neve lá, ocasião durante a qual concluiu que não poderia ficar longe dela. Durante o diálogo, lembrou-se de quando por acaso viu o casal se beijando, perto da praia, numa quente e já distante noite de verão, enquanto curtia uns dias de folga na cidade. Soube depois que o namoro deles começara de fato ali. Com satisfação, o amigo lhe avisou que em breve passariam a morar juntos, um belo relacionamento que evoluía. Quem sabe num futuro próximo, ele também teria alguém? Enfim o elogiou e desejou felicidades.
Perto da janela da sala, pouco antes do anoitecer, enquanto a luz natural diminua em sua morada, naquele dia outonal, disse para si mesmo: "Boa noite, Liberdade. A vida é curta, vou aproveitá-la sem arrependimentos, e fazendo as minhas próprias escolhas."
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MARCADORES: PERUÍBE, PERUIBENSE, CONTO, FICÇÃO, VIDA COMUM, MAIO, 2021