quarta-feira, 4 de maio de 2022

DO CARAGUAVA À CAXIMBA, EM BUSCA DE UMA VIDA MELHOR (CONTO) - MAIO DE 2022



Já fazia cerca de um ano que ele, o rapaz das entregas, tinha se mudado para Curitiba. O fato de ir morar com a família (foi o último que se mudou) no bairro mais pobre da capital paranaense não o incomodou. Para esse peruibense, que praticamente nasceu e cresceu no Caraguava, a Caximba tornou-se um lugar para recomeçar, com esgoto à céu aberto, ruas sem asfalto, habitações precárias, pobreza e mais pobreza, mas muita, muita esperança.

Desde o início, aquela periferia periférica do extremo sul curitibano lhe fez lembrar da infância na terra do sol poente, quando habitava um bairro com condições igualmente difíceis, ou seja, nada de novo no front, com apenas um diferencial: o frio rigoroso, algo que demorou para se acostumar. Com a venda do imóvel que tinha em Peruíbe, o pai (mais de um ano no aperto pagando aluguel), comprou um terreno até que razoável em tamanho, e o que sobrou usou para começar a construção da própria casa, feita com madeira pinus, telhado com telhas de vinco (e manta térmica), e curiosamente, uma fundação com estacas de eucalipto, necessárias por causa dos alagamentos na área, algo que eles já tinham enfrentado na cidade de origem. 

Do lado de fora, uma casa simples, como tantas outras da periferia curitibana, mas por dentro um verdadeiro brinco, e confortável para os cinco membros da família, com três deles trabalhando duro, para todos terem um padrão de vida melhor, que justificasse a mudança para o Paraná.

O pai, o primeiro que se mudou, e que no início trabalhou como pedreiro, mais adiante passou a bater ponto numa mecânica. A mãe, que na nova terra começou com faxinas, voltou a ser caixa de supermercado, e ele (o filho mais velho), que em Peruíbe se virava fazendo entregas, tornou-se um trabalhador "uberizado", circulando de bicicleta pelo Batel e o Centro da cidade, áreas chiques que o impressionavam, mas não o iludiam. "Sou pobre, mas não sou idiota", pensou, enquanto via um Land Rover dirigido por uma loira com rosto e porte de modelo, entrar no estacionamento de um shopping. "Essa não é uma vida que vou ter, pra que fantasiar, olha o nível dessa mina." E seguiu na bike para concluir mais uma entrega, num edifício de escritórios próximo.

Na volta para casa, ele repetiu uma rotina - considerada por alguns - complicada e exaustiva: pedalou até a "oficina" do paizão, no bairro vizinho, Água Verde, onde o mesmo já o aguardava. Puseram a bicicleta num suporte no teto do veículo, e foram buscar a mãe, funcionária de um supermercado em Guaíra, ou seja, a primeira a ficar no emprego e a última a sair.

"O que foi, filho? Parece emburrado.", disse o pai ao volante, enquanto estavam indo buscar a chefa da família.

"Só pensando em algo que sempre quis te perguntar. Como tinha certeza que aqui dava pra gente melhorar de vida?"

"Gostei daqui, pô. Só me ferrava em Peruíbe, e aqui achei trabalho, caramba."

"Mas você só conseguiu vir pra cá, por causa do teu ex-patrão lá do Oasis*, que te arrumou trampo numa obra. Depois que ela acabou, você ficou no aperto, nem dinheiro mandava pra mãe. Por que não arregou?"

"Porque não dava", disse, com uma voz que indicava a lembrança do que sofreu. "Depois que a rua de casa encheu em 2019, perdemos todos os móveis de novo, e nem tava lá pra ajudar vocês, ia fazer o quê? Tinha que ficar, correr atrás de bico, morando de favor com o amigo que fiz na obra, até uma oficina me aceitar. E agora aqui, na correria, contigo e a sua mãe. E tem outra coisa. Eu sou peruibense. Sabe o que isso significa?"

"O que, pai?", disse, com curiosidade.

"Porcaria nenhuma, !" E riu da cara que o filho fez, encerrando a conversa, bem no momento em que chegavam ao serviço da mãe.

Dias depois, numa fria manhã de domingo, o rapaz das entregas foi até um mercado próximo pra comprar pão. Quando voltou pra casa, viu seus dois irmãos: o do meio, usando um celular junto da mesa da cozinha, e a irmã, que sabe-se lá porque, estava dormindo no sofá, após ter se levantado da cama. Reparou no interior bem-decorado (tudo pago por ele e os pais) e olhou para os dois. Lembrou-se das condições extremamente precárias que todos da família passaram, e os vendo bem vestidos e agasalhados, compreendeu que tanto esforço estava valendo a pena. Do patamar de uma pobreza precária, tinham finalmente evoluído para a condição de remediados, algo que considerava impossível de acontecer na cidade em que nasceu, para a qual não sabia se um dia tentaria retornar. Mas de qualquer forma, naquele momento, ele finalmente se sentiu livre.



*bairro praiano de classe média em Peruíbe




OUTRO CONTO RECOMENDADO: PARTINDO DE PERUÍBE, APÓS O AMANHECER


MARCADORES: PERUÍBE, CARAGUAVA, CURITIBA, BAIRRO DA CAXIMBA, MIGRAÇÃO, POBREZA, TRABALHO, MAIO, 2022

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