sábado, 7 de março de 2020

✾"VOCÊ AINDA ESTÁ COM DOR?" / "SIM, PORQUE EU NASCI NAQUELA CIDADE"✾ - MARÇO DE 2020




Era um anoitecer chuvoso, e a última garota aguardava pelo namorado, que a levaria de carro até em casa. Resolveu esperar por ele, numa lanchonete que ficava ao lado rodovia Régis Bittencourt, próxima a uma das entradas de Curitiba. Tinha visitado uma colega de trabalho que morava ali por perto (ambas funcionárias numa mesma loja de um Shopping no centro da cidade, fechado naquele domingo), mas não pode esperar por ele lá, pois a amiga precisou sair, o que a fez ir até aquele estabelecimento, pois começou a chover de repente. Olhou pela janela, úmida por causa daquela fria chuva no final do outono (início de junho), e se entristeceu um pouco.

Ao olhar a estrada, lembrou-se de quando, cerca de um ano atrás, veio de Peruíbe, ela e o amado, num ônibus da viação catarinense, o qual passou bem em frente de onde estava, durante uma tarde quente e ensolarada. Naquela ocasião, olhava a paisagem com curiosidade, novas oportunidades a aguardavam, tinha esperança de que um passado com tantas limitações profissionais seria exatamente isso, passado, algo para se deixar pra trás, para superar. O futuro brilhava de promessa, e de fato ela não se decepcionou ... mas qual era o motivo da tristeza?

A última garota era uma peruibense por nascimento. Sua família já residia na cidade antes mesmo da emancipação, embora não fosse caiçara. Os bisavôs paternos dela tinham vindo de São Paulo, se estabeleceram como comerciantes, e não voltaram mais, pois em Peruíbe conseguiram as condições para criarem uma família, da qual até os netos prosperaram. Mas a geração dela se deparou com um município em crise profunda, e a migração tornou-se uma opção atraente.

Ela migrou não apenas para encontrar melhores oportunidades de trabalho. Estava farta das intermináveis disputas políticas municipais, que nunca se tornavam menos intensas, e cansada das disfuncionalidades locais. Nada por lá parecia melhorar, progredir, o que a fez se tornar profundamente pessimista. Alagamentos na rua em que morava (após cada forte chuva), enchentes, bailes funk insuportáveis na vizinhança, desemprego elevado ... e nenhuma perspectiva de melhora. Aí o namorado apareceu com a ideia de se mudar para a capital do Paraná, onde já tinha o irmão morando, e pronto, não demorou para aprontar as malas e cair fora também, junto com ele, por amor e necessidade.

Ao trocar a terra do cação pela terra do pinhão, a moça concluiu uma triste coleção de empregos ruins e mal remunerados. Não que a vida na maior metrópole paranaense fosse paradisíaca, o trabalho no Shopping era duro, mas o considerava recompensador, não se sentia desvalorizada. Mas quando sentia saudades (pois é), da cidade em que nasceu, lhe vinha uma certa tristeza. O frio daquele domingo contrastava com os domingos tórridos que experimentou naquela agora distante cidade litorânea paulista. Sentia falta de curtir a praia com a família, de se banhar no mar e até do sol de deserto africano que caracteriza o quente verão peruibense. E é claro, os parentes lhe faziam falta. Eram recordações de um tempo que passou, com suas boas e más lembranças.

E ainda tinha a dor para enfrentar ... desde manhã, o frio úmido a presenteou com uma dor-de-cabeça. Tomou uma aspirina, mas o incômodo tinha voltado. Provavelmente era uma sinusite. Pelo celular, falou para o companheiro sobre isso, o qual resolveu comprar um remédio, antes de ir buscá-la. Quando chegou, a viu sentada, com o semblante triste, como se fosse a pessoa mais solitária da noite.


Era a única freguesa no local, as cadeiras e mesas ao redor estavam vazias. Ele se aproximou e foi logo perguntando: "você ainda está com dor?", ao que ela respondeu, logo em seguida: "sim, porque eu nasci naquela cidade". Era a famosa resposta "sem noção", a qual refletia os seus sentimentos conflitantes. Ali mesmo, reconheceu que ainda pensava como uma peruibense, isso não tinha mudado. Riu um pouco do aparente absurdo, explicou para o rapaz o que lhe passava na cabeça quando respondeu, pagou o que consumiu enquanto o esperava, tomou o remédio para parar a dor, e ambos foram de embora de carro, rumo ao tranquilo bairro curitibano onde moravam, lá na casa do irmão dele, enquanto não encontravam algo mais apropriado, e que mais adiante seria apenas dos dois, por puro merecimento.




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MARCADORES: MIGRAÇÃO DE PERUÍBE, PERUIBENSES EM CURITIBA, A ÚLTIMA GAROTA, SAUDADES, ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2020, MARÇO, 2020


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