Os pais a tinham avisado de que não daria certo. Uma das amigas - que tinha se mudado para Florianópolis - também avisou, mas ela não deu importância. Preferiu, no frescor dos seus mal completados dezoito anos, ir contudo num relacionamento que a deixava excitada, literalmente "nas nuvens". E agora, numa tarde triste e fria, estava num ônibus que seguia para São Paulo, onde se recordava do passado mais recente, e do motivo de estar partindo, ou melhor, em fuga. Estava fugindo dele.
Ela o conheceu durante um pancadão em Peruíbe, bairro da Vila Erminda. No princípio o achou feio, mas se sentiu atraída pelo seu jeito cafa, a postura e vestimenta de mano. Soube que ele era respeitado na "quebrada" do bairro, e que fazia sucesso com algumas das piriguetes locais. Não demorou para que olhasse pra ele, o mesmo percebesse, para mais tarde trocarem um papo reto. E o resto da madrugada foi (só entenderia isso mais tarde) uma divertida noite de ilusão.
"Esse vagabundo é um zé droguinha! Você sabe disso, né?", disse seu pai durante um almoço, quando soube que os dois estavam saindo juntos.
"Já sou de maior, faço o que quiser! Você não manda mais em mim!", respondeu, acrescentando no final um inacreditável palavrão, algo que até então não era de seu costume. O progenitor ficou com raiva, mas entendeu que a causa ali era perdida. A filha estava fascinada por um malandro de vida duvidosa, alguém que na melhor das hipóteses, a usaria até se cansar, e ele percebeu que ela não o escutaria. Nem queria pensar nas coisas sujas que já teriam feito juntos. Recordou ter visto essa "novela" antes, protagonizada por outras jovens, num subúrbio da capital, local onde nasceu, cresceu e se casou. Tinha se mudado com a esposa e os filhos então pequenos para o litoral, esperando mantê-los longe da subcultura permissiva e criminal que por lá predominava, mas a mesma desceu a serra e os alcançou. E agora, o que poderia fazer? Cansado da arrogância e do patético "empoderamento" dela, optou por desistir e lavar as mãos. Sua mulher se limitou a dizer que iria rezar para que algum dia a garota "recuperasse o juízo", e o filho, rapaz trabalhador, disse o que pensava sem rodeios, pra logo após ser xingado pela irmã. "Ela que se vire!", o pobre pai pensou.
Enfim, a garota estava "livre", para fazer as besteiras que bem entendesse. E foi morar com o amor dela.
No início tudo era lindo. Se sentia uma princesa, ganhava presentes, era respeitada pelos demais manos e as minas deles, o que muito a agradava. Considerava o pai e o irmão dois autênticos fracassos masculinos, homens simplesmente incapazes de dar para uma mulher o que a mesma queria e merecia, e via a própria mãe como uma ignorante, que só sabia ir para a igreja. Tendo uma famosa e depravada cantora de funk como modelo de comportamento, sonhava com um futuro no qual o amado compraria uma bela mansão num condomínio, na qual dariam imensas festas, as quais durariam até o amanhecer.
E o vida loka "trabalhava" duro para alcançar esse objetivo. Claro que a concorrência e os gastos absurdos com prazeres diversos tornavam essa meta inalcançável. Com o passar dos meses, ela percebeu que o carinho e atenção já não eram os mesmos, e soube que existiam "outras" na área. Ele passou a não se importar em traí-la na maior cara dura, e quando questionado, lhe dizia que ela pelo menos continuava a ser a "oficial", ou seja, o que tinha demais? E foi se conformando.
Isso mesmo, se conformando. Ela, que tanto criticava a aparente passividade da mãe, que se conformava perante o pai dela, homem trabalhador e honesto, porém incapaz de lhe dar uma "vida de rica", agora tolerava as loucuras de um suposto macho alfa da periferia, cujo maior temor era deslumbrar durante a noite o giroflex de uma patrulha policial. E os abusos, no começo apenas verbais, se tornaram físicos e violentos, o que a fez ver que amor-bandido só lhe parecia bonito em relatos romanceados de mulheres que sofrem de Hibristofilia, algo que concluiu não ter, considerando sua crescente insatisfação. Visitar o amado na cadeia? Nem pensar, a hipótese disso acontecer a desgostava, a simples ideia lhe causava vergonha, por mais sem-vergonhices que já tinha feito por ele.
O mais difícil era aceitar que tinha errado, caído no conto de um zé droguinha tatuado, tal como seu progenitor a avisara. Seu orgulho era a última barreira frente à realidade, muitos tinham dito que isso aconteceria. Na última vez que foi ao UPA, disse para um recepcionista, calejado com tantas "histórias", que o machucado no rosto era resultado de uma "queda" em casa. Enfermeiras e o médico que a atenderam questionaram a origem do ferimento, e escutaram a mesma resposta, tão verdadeira quanto uma nota de três reais. Claro que isso não poderia durar.
"Tô saindo, vagabunda! Vou fazer um corre, fica de boa, volto de noite", disse ele, numa tarde de sábado. "E nem pense em sair", ameaçou. E foi aí que tudo terminou.
Durante uma noitada de drogas (da qual foi uma infeliz espectadora, pois fazia tempo que não as usava, por um esforço quase que milagroso), ela conseguiu subtrair dele algum dinheiro, do qual o mesmo felizmente não sentiu falta. Pegou uma mochila, botou o necessário (umas poucas roupas e os próprios documentos) e tratou de ir embora. Para que nenhum olheiro a denunciasse, conseguiu pular o muro para uma casa ao lado, que estava vazia, e sem muita dificuldade saiu por outra rua. Felizmente, avistou uma van chegando, na qual seguiu até a rodoviária, e embarcou rumo à Sampa, para onde os pais e o irmão tinham retornado, meses antes.
Como não tinha mais celular (que o mozão lhe tinha tirado), foi incapaz de dizer para eles que estava indo, e ignorava como seria recebida. Se sentia uma mulher suja, fracassada, burra e coisa pior, alguém de segunda classe, com a qual ninguém se importava. Enfim entendeu que o "machismo" do pai era apenas amor e preocupação paterna, e estava disposta a se humilhar para lhe pedir perdão. Para quem mais poderia recorrer?
Quando chegou ao distante bairro da zona sul, seu destino final, e avistou a casa da família (curiosamente, localizada não muito longe da rodoviária do Jabaquara, onde desembarcou), ela se amedrontou, pois tinha muita vergonha. Só pouco antes do entardecer, resolveu bater palmas em frente ao portão. Logo a porta da frente se abriu, uma dona-de-casa apareceu e a reconheceu. Quando ambas se aproximaram, ela se limitou a abraçar a mãe, uma sofrida mãe chorosa, que em seu íntimo agradeceu a deus, por ter escutado as suas inúmeras orações.
Algum tempo depois, o pai chegou do trabalho, e a viu sentada num dos sofás da sala, como se estivesse lhe esperando (e estava). Se esforçando em ocultar a surpresa, disse, com um olhar severo:
"Então, você veio."
"Sim, pai", ela respondeu.
"É pra ficar, ou só tá de visita?"
"Se o senhor deixar, é pra ficar."
"Virei 'senhor' agora? Cadê a menina superpoderosa, a feminista que se achava a princesa da 'quebrada'?"
"Pai, eu sei que não dá pra mudar o passado, e você tem razão de estar assim. Mas juro que acabou, não dá mais. Ele tá fora da minha vida, pra sempre."
"Espero que sim. Tua mãe rezou muito pra esse dia chegar. Agradeça ela por estar aqui. Entendeu?"
"Já agradeci, pai. Desde o começo, mamãe disse que rezaria por mim."
"Ótimo. E mais uma coisa. NADA DE FUNK NESTA CASA, e de drogas nem preciso falar! Você entendeu as minhas regras? Se quer mesmo ficar, será assim. E vai ter que trabalhar, isto aqui é casa de pobre, e terá que pagar teus luxos. Entendeu?"
"Sim, papai. Entendi. Vou me esforçar para não voltar pra aquela vida. E perdão por tudo", ela disse, envergonhada.
"Muito bem, todos nós vamos ajudar você. Sei que não será fácil, mas a ajudaremos. Agora, chega disso e vou pedir umas pizzas. O momento é de comemorar, não é mesmo?", e sorriu para ela.
Um pouco mais tarde, o irmão chegou, e ainda na rua, soube por uma das vizinhas que a irmã estava de volta. Logo, entendeu o que tinha acontecido, e ficou do lado de fora, muito zangado. A mãe o viu, e foi falar com ele:
"Filho, tua irmã tá aí! Não vai vê-la?"
"Mãe, o que ela está fazendo aqui? Não estava juntada com aquele vagabundo?"
"Ela o abandonou, e teu pai tá muito feliz, pediu até pizza pra gente. Por favor, vá ver ela."
"Mãe, isso não é justo. Tua filha ficou com aquele bandido, mesmo sabendo o que ele é, com todos avisando, e vai ficar tudo por isso mesmo? Ficou numa vadiagem porca, e agora volta de boa? Só faltam fazer festa por causa dela!"
"Minha filha voltou pra mim. Sei que ela te xingou, te ofendeu, mas entenda, ELA VOLTOU PARA NÓS! Deus me escutou e ela está aqui. Estamos felizes, entende?"
"Eu sempre estive ao lado de vocês, nunca os deixei, e jamais vi tanta alegria da senhora e do pai para comigo. E então?"
"Meu filho", disse a mãe, entre lágrimas. "Eu e teu pai te amamos muito, e sempre seremos gratos por você ser tão bom para nós. Mas ela estava PERDIDA NO MUNDO, sem quem a orientasse, morta pra tudo o que é bom. Agora ela se afastou daquele homem, e nos reencontrou. Por favor, dê uma chance para ela."
O filho entendeu a mãe, pois percebeu que estava sendo injusto (para com os pais, que não tinham culpa dos erros dela), e foi para dentro, onde reencontrou e conversou com a irmã, da qual tinha se afastado desde a última vez que almoçaram juntos (naquela ocasião tinham cortado relações). Tiveram uma conversa que no princípio pareceu fria e cheia de constrangimento, mas que aos poucos evoluiu para um clima animado. Pensou em mais tarde conversar com o pai, sobre caso o ex tentar procurá-la, mas intuitivamente, entendeu que isso não aconteceria, já que o mesmo, passado o ódio, botaria outra coitada no lugar, além de temer ir atrás dela num território desconhecido, onde ele e os pais, com parentes e amigos morando nas proximidades, tinham como protegê-la. No dia seguinte, daria uma foto do infeliz para um policial da vizinhança. Ali, o vagabundo jamais se atreveria a aparecer. E Peruíbe seria uma página virada, para todos.
Quando a buzina do entregador tocou, ambos foram pegar as pizzas, como se estivessem nos velhos tempos. Aquela foi uma noite de alegria, pois a filha pródiga tinha finalmente voltado para casa, tendo retornado para a família que tanto a amava.
Quando a buzina do entregador tocou, ambos foram pegar as pizzas, como se estivessem nos velhos tempos. Aquela foi uma noite de alegria, pois a filha pródiga tinha finalmente voltado para casa, tendo retornado para a família que tanto a amava.
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MARCADORES: CONTO LITERÁRIO, DRAMA, FAMÍLIA, DEUS, O FILHO PRÓDIGO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM PERUÍBE, PANCADÃO (BAILE FUNK) NA VILA ERMINDA, JUNHO, 2022
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