terça-feira, 6 de abril de 2010

Blogueiro e sem-teto


A voz dos sem-teto

Ele perdeu trabalho, família e esperança. Vive nas ruas e, na internet, achou um sentido para a vida e um meio de luta

PAULA MAGESTE


Kevin Barbieux acorda às 4h45, arruma a cama, veste-se e caminha até um Burger King no centro de Nashville, no Estado americano do Tennessee. Come ovos com bacon e toma uma Coca Light no café da manhã. Lê um pouco – adora o mestre da psicanálise Carl Jung –, conversa com os colegas, dá uma passada em um café, bate mais um papo e olha os jornais do dia. Então vai para a biblioteca pública, e lá fica até a hora em que fecha, dividido entre livros e um computador ligado à internet. Todos os dias ele atualiza seu blog, um diário que pode ser lido por qualquer cidadão que navegue na rede: www.thehomelessguy.blogspot.com. Seria uma rotina banal, não fosse Barbieux, de 41 anos, um sem-teto.

Ele mora nas ruas e abrigos há duas décadas. Casou, teve dois filhos, mas não conseguiu manter 'uma vida normal'. Barbieux desconfiou de Deus e perdeu a fé em si mesmo, mas foi salvo pelos livros e pela tecnologia. Agora usa seu blog, que teve mais de 100 mil visitantes em menos de três meses, para 'legitimar os moradores de rua, pedir que sejam tratados como seres humanos, com compaixão, aceitação e assistência'.

ÉPOCA – Como você foi parar na rua?
Kevin Barbieux – Em 1982, resolvi deixar minha cidade, San Diego. Vim até onde o dinheiro deu, Nashville. Não consegui trabalho e passei a dormir no carro. Quando o frio ficou insuportável, procurei um dos abrigos da cidade para os sem-teto.

ÉPOCA – Muitas pessoas ficam sem dinheiro e não vão morar na rua. Por que você fez essa escolha?
Barbieux – Ninguém escolhe viver na rua. Para mim foi algo inevitável, porque tenho distúrbio de ansiedade e dificuldades de aprendizado. Não possuo as condições necessárias para cuidar de mim mesmo e viver de forma independente.

ÉPOCA – Seus pais não o ajudaram?
Barbieux – Eles têm tão pouco interesse quanto compreensão sobre minha situação. Não são pessoas instruídas nem generosas. Ter sido criado por esse tipo de gente deve explicar parte de meu problema.

ÉPOCA – Você já teve emprego?
Barbieux – Um dos últimos foi em um misto de loja e restaurante. Havia tanta gente no ambiente que eu não conseguia me sentir no controle, ficava muito nervoso e aí tinha ataques de ansiedade. Transpirava e ficava sem ar, não conseguia falar. E aí ficava mais nervoso.

ÉPOCA – Como foi seu casamento?
Barbieux – Eu e minha ex nos conhecemos nas ruas, mas ela nunca foi sem-teto. Com ela consegui levar uma vida 'normal' por um tempo. Mas o amor não durou e eu voltei para a rua. Deixei as crianças com ela. Não queria que elas se sentissem divididas.

ÉPOCA – Como você acha que seus filhos lidam com sua condição?
Barbieux – Eles não sabem de nada. Minha ex-mulher evita qualquer tipo de assunto delicado, e essa é uma das razões pelas quais nos separamos.

ÉPOCA – Como você começou a fazer blog?
Barbieux – Participo de um fórum de discussão na internet sobre a cantora gospel Sarah Masen. Alguém mencionou os blogs e eu resolvi fazer o meu.

ÉPOCA – Com que objetivo?
Barbieux – Sempre fui lento para ler, ruim de gramática. Eu me acho inteligente, mas não pude me desenvolver na rede pública de ensino. Então tomei para mim a tarefa de melhorar minha compreensão do mundo e de superar minhas limitações, tornar-me mais sociável. Tentei fazer um jornal para os sem-teto, que durou apenas dois números, o que despertou em mim o gosto pela escrita. Há alguns anos mantenho um diário pessoal. Num abrigo fiz um curso de um ano que me ajudou a ler melhor.

ÉPOCA – O que é mais difícil de explicar?
Barbieux – As pessoas vêem o tema em preto e branco, mas há muitas nuances. Alguns acreditam que sem-teto é quem mora na rua. Mas, se você passa as noites num abrigo, lá é sua casa? E se você mora de favor? Eu, por exemplo, às vezes durmo em abrigos, mas, quando não encontro vaga ou chego depois do horário, fico nas ruas mesmo.


ÉPOCA – Como é a vida na comunidade sem-teto?
Barbieux – Aqui em Nashville ninguém morre de fome. A primeira coisa que as pessoas pensam em doar é comida, e outras necessidades nunca são atendidas. Por exemplo: os moradores de rua não têm acesso ao sistema de saúde pública porque não têm como comprovar residência. Deixei de receber remédios gratuitos por essa razão.

ÉPOCA – Como são as amizades e as relações amorosas nas ruas?
Barbieux – Imagino que a dinâmica das amizades seja a mesma em qualquer lugar. É difícil achar gente em quem se possa confiar. Sempre fui solitário. Quanto ao amor, as dificuldades também são universais. Há poucas mulheres nas ruas. A maiora vai para os abrigos femininos. É difícil o amor brotar nesse ambiente. Não me envolvo com as sem-teto porque as que conheço são drogadas e buscam homens que possam colaborar com seu vício.

ÉPOCA – Há muitos drogados e alcoólatras?
Barbieux – Drogas são uma válvula de escape. Sair das ruas é uma empreitada estressante e difícil. A menos que a pessoa seja muito forte, vai recorrer às drogas, e isso acaba inviabilizando o plano original. Quando há o chamado duplo diagnóstico, ou seja, a pessoa tem distúrbios mentais e é viciada, quase não há esperança. A vida se resume a ficar doidão a maior parte do tempo para não enfrentar a realidade.


ÉPOCA – Qual é a sua válvula de escape?
Barbieux – O computador, a leitura, exercitar meu cérebro. Sinto estar fazendo algo construtivo.

ÉPOCA – Hoje, quais são as principais questões relativas aos direitos dos sem-teto nos Estados Unidos?
Barbieux – Assim como ocorreu com os negros americanos na década de 50, os sem-teto precisam se posicionar para que sejam respeitados pela população. Tem muita gente que acha que homeless não têm nada a reivindicar. Pretendo criar uma entidade para ajudar.

ÉPOCA – Como funcionaria?
Barbieux – Seria o oposto de tudo o que existe hoje. Em vez de espalhar recursos para tentar tirar várias pessoas da rua ao mesmo tempo, eu concentraria verbas e esforços em pequenos grupos, oferecendo cursos rápidos em áreas diversas e orientação vocacional. O sistema atual não possibilita realizar nenhuma mudança significativa, porque é muito pulverizado.

ÉPOCA – Você tem conhecimento sobre a vida dos sem-teto em outros países, daria algum conselho a eles?
Barbieux – Venham para os Estados Unidos! Sabemos que é melhor ser sem-teto aqui do que em qualquer outro lugar do mundo.

ÉPOCA – Ninguém nunca oferece ajuda ou emprego?
Barbieux – A maioria das pessoas só estende a mão quando o outro já está no fundo do poço, quase sem possibilidade de volta. Recebi apenas uma oferta em toda a minha vida. Um homem que leu meu blog me convidou para escrever artigos. Disse que pagaria US$ 50. Aceitei, mas não tive tempo de fazer nada ainda. Essa minha atividade na internet beneficia várias pessoas. Se parar de fazer isso para escrever os artigos, somente eu vou me beneficiar.

ÉPOCA – Em seu site as pessoas podem fazer doações eletrônicas. Quanto você ganha?
Barbieux – Sou comedido com o dinheiro que vem da generosidade dos internautas. Mesmo assim, há dias em que não tenho nada. Gasto a maior parte em comida e lavanderia. Uma pessoa me mandou uma quantia especificando que era para um casaco. Obedeci. Também comprei um par de sapatos. Mas certamente não recebo o suficiente para alugar um apartamento. Nem perto disso.

ÉPOCA – Muita gente critica o fato de você não ter emprego, já que é tão articulado a ponto de manter um blog.
Barbieux – Sou uma ameaça, porque ninguém falava dos direitos e necessidades dos sem-teto. Tenho essa capacidade, e farei isso. Talvez essa seja minha missão.

ÉPOCA – Se você pudesse ter uma vida fora das ruas, o que faria?
Barbieux – Pretendo estudar sociologia de qualquer jeito. Talvez meu blog me ajude a conseguir uma bolsa. Seria um pecado não aproveitar minhas experiências para beneficiar a todos.

ÉPOCA – O que seria preciso para tirar um sem-teto das ruas?
Barbieux – Para mudar de vida, o morador de rua precisa ter conexões com o 'mundo real'. Então, a melhor coisa que alguém pode fazer por um sem-teto é dar-lhe um pouco de seu tempo, ficar amigo. Eu nunca fui convidado para jantar na casa de alguém ou para assistir a um jogo na TV.

FONTE: Revista Época

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